2004-03-25
O partido da raposa
António Mega Ferreira / VISÃO nº 575 11 Mar. 2004
No início do seu magnífico estudo sobre a visão da História que atravessa a obra de Tolstoi, o pensador de expressão inglesa Isaiah Berlin deduz, de um obscuro fragmento do poeta grego do século VII a.C. Arquíloco («a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante»), uma sedutora teoria sobre a divergência fundamental «entre os escritores e os pensadores e, quiçá, os seres humanos em geral». Diz Berlin que os ouriços são os que «remetem tudo para uma perspectiva central e única, para um sistema, mais ou menos coerente e articulado, em função do qual compreendem, pensam e sentem»; as raposas «prosseguem vários fins, muitas vezes desconexos e até contraditórios, apenas relacionados, se for o caso (…), por uma causa psicológica ou fisiológica, dissociada de qualquer princípio moral ou estético».
Numa primeira aplicação da sua interessante teoria (que, reconhece, pode tornar-se «artificial, escolástica e definitivamente absurda, se levada às últimas consequências»), Berlin, um dos mais estimulantes pensadores do século XX, acha que Dante era um ouriço, enquanto Shakespeare era uma raposa. Ouriços seriam também, entre outros, Platão, Hegel, Nietzsche e Proust; nas raposas «arruma» Aristóteles, Montaigne, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce.
É aliciante aplicarmos este crivo, sugestivamente poético, às realidades que nos estão mais próximas. Eu vejo Alexandre Herculano, muito ouriço, tentando desesperadamente arrancar aos alfarrábios um qualquer princípio que nos justificasse como nação; enquanto Garrett, a maior raposa das nossas letras (não é por acaso que Hélder Macedo o aproxima de Púchkin), saltando entre o teatro e a política, entre a língua e a sociedade, é uma das mais exaltantes afirmações de atenção e imersão no tempo que passa e que
– sabem-no as raposas – nunca mais se repete.
Há casos como o de Tolstoi: este genial investigador de ambientes e comportamentos, de filosofias e de estratégias, de mitos e de sofismas, procurou, até à exaustão, um qualquer princípio que lhe permitisse ver claro no formidável painel das movimentações colectivas que fazem a História. Foi, como diz Berlin, «uma raposa amargamente empenhada em ver à maneira de um ouriço». E não sei se essa não é também, por outros motivos, a tragédia de Nietzsche, apóstolo do «homem novo», mas discípulo atormentado dos «homens velhos», dos Gregos a Wagner.
Todos nós, em maior ou menor grau, passamos, no decurso da nossa existência, por uma fase de ouriço: é normalmente quando, surpreendidos no início da idade adulta pela formidável diversidade da vida, nos entregamos às certezas confortáveis das «grandes narrativas». Há-de haver qualquer coisa, uma explicação qualquer, que ponha ordem em tudo isto, dizemos, apavorados perante o imenso desafio que representa o caos aparente de uma vida diante da qual nos sentimos demasiado pequenos. Meter a vida toda dentro de um sistema é a tentação fatal do marxismo, como o é de todas as religiões. Ceder a essa tentação talvez seja um passo compreensível; mas não é um destino incontornável.
Depois, pouco a pouco, habituamo-nos a reconhecer que é da essência da própria vida que ela se nos apresente assim, incontrolável, irredutível, incaptável. É claro que há quem, ouriço por opção, se acomode às certezas, eternas ou precárias, de uma explicação do mundo – e daí não se mova, até ao fim da vida. É que ser ouriço ou raposa não é o resultado automático (o que seria uma explicação de ouriço…) de condicionantes meramente culturais. É-se uma coisa ou outra também – e até talvez em primeira linha – por disposição do espírito ou educação do gosto, para já não falar de predisposição genética, à qual a minha curiosidade não chega com conhecimento razoável.
A «divergência fundamental» de que fala Isaiah Berlin é o muro onde esbarram todas as nossas divisões, tudo o que nos afasta de um discurso unânime sobre a realidade. As «grandes certezas» não são susceptíveis de serem sufragadas pela totalidade dos seres humanos, para grande desespero dos ouriços e gáudio evidente das raposas. A ilusão da totalidade não é necessariamente totalitária, mas é totalizante e redutora. Pode ser a salvação do ouriço; mas é o desespero da raposa.
A distinção entre ouriços e raposas pode aplicar-se a qualquer coisa: há ouriços que tendem a ver as finanças públicas como o princípio exclusivo ou condutor de toda a organização social; e há raposas que, reconhecendo embora que as finanças públicas são «uma coisa muito importante», introduzem na sua análise «muitas coisas», como a economia, a política, a psicologia, e, sobretudo, o bem-estar das pessoas. Os primeiros tendem a remeter a salvação para um futuro incerto ou transcendente; os segundos acreditam que há apenas uma vida para viver e que todo o futuro só vale a pena se as suas expectativas se começarem a viver no presente.
Moral da história? Não sei. Sei apenas que há muito tempo já que tomei o partido da raposa.
Proponho-me desossar este texto sem pressa, aqui, aceitam-se contribuições.
Encontrei-o na fila/bicha do supermercado no fim-de-semana. O sentido, penso que não é difícil perceber, mas o porquê da divisão feita, só sabendo mais alguma coisa sobre o pensamento dos nomes mencionados se chega lá. Sobre Montaigne já referi algumas informações ainda que superficiais, há tempos, a propósito de um mail do Costa. Aguardemos portanto...
António Mega Ferreira / VISÃO nº 575 11 Mar. 2004
No início do seu magnífico estudo sobre a visão da História que atravessa a obra de Tolstoi, o pensador de expressão inglesa Isaiah Berlin deduz, de um obscuro fragmento do poeta grego do século VII a.C. Arquíloco («a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante»), uma sedutora teoria sobre a divergência fundamental «entre os escritores e os pensadores e, quiçá, os seres humanos em geral». Diz Berlin que os ouriços são os que «remetem tudo para uma perspectiva central e única, para um sistema, mais ou menos coerente e articulado, em função do qual compreendem, pensam e sentem»; as raposas «prosseguem vários fins, muitas vezes desconexos e até contraditórios, apenas relacionados, se for o caso (…), por uma causa psicológica ou fisiológica, dissociada de qualquer princípio moral ou estético».
Numa primeira aplicação da sua interessante teoria (que, reconhece, pode tornar-se «artificial, escolástica e definitivamente absurda, se levada às últimas consequências»), Berlin, um dos mais estimulantes pensadores do século XX, acha que Dante era um ouriço, enquanto Shakespeare era uma raposa. Ouriços seriam também, entre outros, Platão, Hegel, Nietzsche e Proust; nas raposas «arruma» Aristóteles, Montaigne, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce.
É aliciante aplicarmos este crivo, sugestivamente poético, às realidades que nos estão mais próximas. Eu vejo Alexandre Herculano, muito ouriço, tentando desesperadamente arrancar aos alfarrábios um qualquer princípio que nos justificasse como nação; enquanto Garrett, a maior raposa das nossas letras (não é por acaso que Hélder Macedo o aproxima de Púchkin), saltando entre o teatro e a política, entre a língua e a sociedade, é uma das mais exaltantes afirmações de atenção e imersão no tempo que passa e que
– sabem-no as raposas – nunca mais se repete.
Há casos como o de Tolstoi: este genial investigador de ambientes e comportamentos, de filosofias e de estratégias, de mitos e de sofismas, procurou, até à exaustão, um qualquer princípio que lhe permitisse ver claro no formidável painel das movimentações colectivas que fazem a História. Foi, como diz Berlin, «uma raposa amargamente empenhada em ver à maneira de um ouriço». E não sei se essa não é também, por outros motivos, a tragédia de Nietzsche, apóstolo do «homem novo», mas discípulo atormentado dos «homens velhos», dos Gregos a Wagner.
Todos nós, em maior ou menor grau, passamos, no decurso da nossa existência, por uma fase de ouriço: é normalmente quando, surpreendidos no início da idade adulta pela formidável diversidade da vida, nos entregamos às certezas confortáveis das «grandes narrativas». Há-de haver qualquer coisa, uma explicação qualquer, que ponha ordem em tudo isto, dizemos, apavorados perante o imenso desafio que representa o caos aparente de uma vida diante da qual nos sentimos demasiado pequenos. Meter a vida toda dentro de um sistema é a tentação fatal do marxismo, como o é de todas as religiões. Ceder a essa tentação talvez seja um passo compreensível; mas não é um destino incontornável.
Depois, pouco a pouco, habituamo-nos a reconhecer que é da essência da própria vida que ela se nos apresente assim, incontrolável, irredutível, incaptável. É claro que há quem, ouriço por opção, se acomode às certezas, eternas ou precárias, de uma explicação do mundo – e daí não se mova, até ao fim da vida. É que ser ouriço ou raposa não é o resultado automático (o que seria uma explicação de ouriço…) de condicionantes meramente culturais. É-se uma coisa ou outra também – e até talvez em primeira linha – por disposição do espírito ou educação do gosto, para já não falar de predisposição genética, à qual a minha curiosidade não chega com conhecimento razoável.
A «divergência fundamental» de que fala Isaiah Berlin é o muro onde esbarram todas as nossas divisões, tudo o que nos afasta de um discurso unânime sobre a realidade. As «grandes certezas» não são susceptíveis de serem sufragadas pela totalidade dos seres humanos, para grande desespero dos ouriços e gáudio evidente das raposas. A ilusão da totalidade não é necessariamente totalitária, mas é totalizante e redutora. Pode ser a salvação do ouriço; mas é o desespero da raposa.
A distinção entre ouriços e raposas pode aplicar-se a qualquer coisa: há ouriços que tendem a ver as finanças públicas como o princípio exclusivo ou condutor de toda a organização social; e há raposas que, reconhecendo embora que as finanças públicas são «uma coisa muito importante», introduzem na sua análise «muitas coisas», como a economia, a política, a psicologia, e, sobretudo, o bem-estar das pessoas. Os primeiros tendem a remeter a salvação para um futuro incerto ou transcendente; os segundos acreditam que há apenas uma vida para viver e que todo o futuro só vale a pena se as suas expectativas se começarem a viver no presente.
Moral da história? Não sei. Sei apenas que há muito tempo já que tomei o partido da raposa.
Proponho-me desossar este texto sem pressa, aqui, aceitam-se contribuições.
Encontrei-o na fila/bicha do supermercado no fim-de-semana. O sentido, penso que não é difícil perceber, mas o porquê da divisão feita, só sabendo mais alguma coisa sobre o pensamento dos nomes mencionados se chega lá. Sobre Montaigne já referi algumas informações ainda que superficiais, há tempos, a propósito de um mail do Costa. Aguardemos portanto...
Comments:
Enviar um comentário